Numa sociedade com princípios e valores cada vez mais invertidos há os que tentam ser diferentes, fiéis à sua própria identidade, evitando ir por caminhos já percorridos que não levam a lado nenhum. Mas para isso é preciso muita coragem, determinação e foco, sem nunca se deixarem abater pelo medo de represálias. Henrique e Leonor eram assim. Tinham-se conhecido muito novos, através de amigos comuns, mas as vicissitudes da vida fez com que perdessem o contato durante alguns anos.
Num belo dia de março, com cheirinho a primavera lá fora, voltaram a encontrar-se através da rede social do facebook e, desde aí, nunca mais e largaram. Ambos tinham passado por muito na vida, com algumas mágoas e desilusões à mistura. Muitas vezes sentiram-se sós no meio de uma multidão porque se julgavam incompreendidos e pensavam que o problema estava neles.
- Será que eu estou errado? – pensou tantas vezes o Henrique, assim como a Leonor. Apesar de tudo nunca se deixaram ir em rebanhos, afinal tinham o seu próprio mundo onde se recolhiam e escapavam, nem que fosse por algumas horas, de tudo o que se passava lá fora. Naquela sociedade com a qual nunca se identificaram. Não se consideravam anti-sociais mas fazia-lhes muita confusão o facto de serem poucos o que realmente diziam aquilo que pensavam e sentiam. Quase todos seguiam pelo politicamente correto porque afinal esta é a forma mais fácil de conviver com os outros. Mas eles não queriam ser assim. Muitas foram as vezes em que criaram algumas hostilidades só pela sua grande frontalidade. Eram muito terra à terra, tinham uma forma própria de pensar, seguiam pela sua cabeça e nunca se deixam levar pelos demais.
Consideram-se revoltados por natureza e muitas foram as lutas em que participaram em prol dos direitos outrora adquiridos e que estavam a ser violentamente tirados aos cidadãos. Ambos completavam-se, diziam ser duas almas num só corpo e desde o dia em que se reencontram nunca mais se sentiram sozinhos. Afinal tinham-se um ao outro e felizmente alguns amigos verdadeiros com os quais sabiam que podiam contar em todos os momentos. Não era muitos, é um facto, mas mais vale poucos e amigos de verdade, do que muitos que só deixam criar falsas aparências.
Por vezes, a dureza do exterior era tamanha que tinham que se refugiar numa espécie de redoma invísivel aos olhos dos outros para bem da sua sanidade mental. Não se reviam em quase nada ou ninguém. Católicos não praticantes, a fé era algo de muito precioso que os guiava pela vida, sempre com Ele no pensamento e muitos anjos a mostrar-lhes a luz ao fundo do túnel.
Embora sem cor política não entendiam como é que as pessoas pouco ou nada faziam para lutar pelos direitos que tanto custaram aos nossos antepassados. Esta era a luta deles. Um dos seus propósitos de vida. A mudança de mentalidades não é fácil, afinal eles também não se consideravam melhores nem piores do que ninguém…apenas diferentes! Talvez por terem uma veia artística…o Henrique adorava desenhar caricaturas e a Leonor tinha uma queda especial para o artesanato…tinham uma percepção mais clara, embora imperceptível aos olhos dos outros, das coisas, do mundo, das pessoas.
Tantas vezes, em conversa um com o outro, se lembravam do 25 de abril de 1974…não eram nascidos na altura mas a história dessa grande reviravolta em Portugal estava-lhes
gravada no coração. Admiravam e idolatravam muitos dos famosos e, alguns já desaparecidos, capitães de abril pelo seu arrojo e coragem em dizer “basta”. E, gostavam de ver esse sentimento de força, já presente na alma lusitana desde o tempo dos descobrimentos, novamente aceso por entre as massas.
Claro que por serem assim tinham um grupo muito restrito de pessoas com quem partilhavam as suas emoções e sensações, embora sem entrar na profundeza das grandes questões porque sabiam que, no fim de contas, pouco ou nada adiantaria. A mudança começa por dentro e tem de partir de cada um de nós. Não eram os profetas da verdade. O que os guiava era a sua própria forma de entender a verdade e a liberdade. Muitas das vezes, nos seus trabalhos, sentiam-se postos de parte, não porque não dessem o melhor de si, mas porque se recusavam a entrar em grupinhos e, desse modo, sabiam que muitos dos caminhos não se abriam. E será que eles queriam que fossem abertos? Talvez não. Talvez não fosse aquele o destino certo para duas almas que comunicavam através de um olhar.
Cansados de tantas discussões acesas que tiveram em várias alturas, porque tocavam em certos temas considerados tabus para muitos, optaram pela contenção verbal mas sem nunca perder a vontade de continuar a luta.
Participaram em muitas manifestações, defendiam até à exaustão o direito dos trabalhadores, das crianças, dos idosos, dos animais. Não se conformavam com os cortes e mais cortes em áreas intocáveis na sociedade, como por exemplo, a saúde e a educação. Fazia-lhes confusão a ilusão das aparências que se proliferavam a olhos vistos por cada esquina. Era vê-los passeando-se quem nem pavões, julgando-se superiores aos outros pelos bens que possuíam mas virados de cabeça para baixo pouco ou nada se aproveitava. Defendiam com unhas e dentes a prevalência do ser sobre o ter e sabiam, bem lá no fundo, por várias experiência vividas, que as aparências iludem, e de que maneira! As máscaras quando caem revelam a verdadeira identidade de alguns que se escondem durante anos e, nessa altura, não há volta a dar porque o confronto com a realidade é por demais horripilante.
Embora dessem muito valor aos sentimentos, à solidariedade, à entreajuda, à gratidão e ajuda ao próximo, tinham aprendido a ser um pouco mais frios, por vezes com alguma ironia à mistura, nunca baixando demasiado os flancos porque por muitas vezes foram enganados por pessoas interesseiras e ingratas, que só se lembravam da sua existência quando precisavam. Sabiam que esta era uma autêntica selva num país à beira do abismo, no qual tudo foi completamente invertido, escapando-se alguns seres ainda puros por dentro. Eram estas as excepções à regra, e ainda bem que as há, e que serviam como uma espécie de âncora que os fazia relaxar, quando navegavam de porto em porto, sempre que a tempestade acalmava.
Muitos confundiam também com a sua revolta com vitimização. Algo que até hoje nunca compreenderam. Não, não eram vítimas. Eram simplesmente duas almas revoltadas com a submissão de muitos às regras previamente definidas, sem se deixarem expressar em toda a sua plenitude por medo de represálias ou porque simplesmente isso não lhes convinha. Não entendiam o porquê destas atitudes mas depressa se aperceberam que não queriam entender porque nunca iria haver uma resposta plausível. Afinal a vida não é matemática, onde dois e dois são quatro. Cada cabeça sua sentença e os atos ficam para quem os pratica.
Estes eram dois dos lemas que os guiavam pela vida e embora não pertencessem a nenhum clã sentiam-se livres por dentro e isso expressava-se por fora. Tinham os seus próprios conceitos de liberdade e, às vezes, até se deixavam levar por uma utopia porque acreditavam que a mudança seria possível. Que as consciências pudessem finalmente despertar depois de anos e anos adormecidas. Que os gritos de revolta se fizessem ouvir bem alto. Que as más energias emanadas fossem extinguidas. Que os pensamentos fluíssem sem entraves. Que a justiça fosse igual para todos. Que a opressão aos mais pobres terminasse de uma vez por todas. Que nunca ninguém se achasse superior a outrem. Que nunca se espezinhasse as pessoas para alcançar os meios sem olhar a fins para os atingir.
- Seriam loucos? Talvez…mas são esses mesmos loucos que têm a coragem de empurrar a humanidade para a frente, sem a deixar ficar estagnada e parada no tempo. São eles que mexem com os estigmas, tentam acabar com tabus e preconceitos. E, sem eles a evolução e, quem sabe, a mudança nunca seria possível de ser sonhada e um dia tornada realidade.
A única coisa que os prendia era o trabalho. Era uma mistura estranha de sensações. Embora se sentissem contentes por terem um ganha-pão sentiam-se colocados numa prateleira, enquanto outros subiam à sua frente. De quando em quando alguém lhes limpava o pó, puxava o lustro, mas continuavam por lá, sabendo que não saíram da cepa torta…e tinham capacidades para tanto mais.
Sim porque tinham consciência daquilo que eram capazes de fazer, do seu valor enquanto profissionais mas como não faziam as jogadas de bastidores nada iria mudar. Tinham a certeza disso. Mas precisavam de trabalhar para sobreviver. Sim…sobreviver. Contando os tostões a cada dia, com contas e mais contas para pagar, responsabilidades às quais não podiam faltas, só que isso não lhes tirava o sorriso do rosto e a grande força interior. Tinham um sonho em comum e um dia iriam conseguir concretizá-lo. Aí sim sentiram que todo o esforço, todos os sapos engolidos, todas as lágrimas derramadas, todo o sofrimento não tinham sido em vão.
O segredo consistia em saber esperar! Para isso era necessário muita aprendizagem, concentração e determinação porque nunca se podiam desviar do que realmente queriam, não o partilhando com mais ninguém para evitarem qualquer tipo de negatividade que os puxassem ainda mais para trás.
- Para a frente é que é o caminho! E se hoje foi um dia mau, amanhã será de certeza um dia bem melhor. Temos é de dar graças todos os dias porque aquilo que somos, pelo amor, harmonia e paz que reina no nosso lar. Isso sim é o importante – dizia muitas das vezes para si própria Leonor.
E, assim, ia encarando mais um despertar, e por mais que lhe faltassem forças, porque os guerreiros também se vão abaixo, sempre sentiam algo que lhes dizia baixinho – “Não desistam. Tenham calma que a vossa hora vai chegar”. Era a voz dos anjos que tinham no céu. Almas bondosas e pessoas muito especiais nas suas vidas que tinham partido muito cedo mas deixaram um importante legado no coração de cada um.
Sempre pensaram terem nascido na década errada. E, como eles, também muitos tinham essa sensação. Reviam-se em pensamentos de grandes filósofos e escritores do passado, ao ponto de conseguirem sentir que pelo menos não estavam sós. Em tempos longínquos
outros também passaram pelo mesmo e através da escrita faziam do papel o seu confidente, deixando para a humanidade uma importante riqueza cultural. Amavam as artes, o teatro, a literatura, o cinema, a fotografia, qualquer forma de expressão artística os atraía e esse era um dos escapes para fugir à rotina e stress diário.
Enquanto a Leonor ficava na sua mesa imaginando e fazendo os seus trabalhos manuais, Henrique pegava no seu bloco e desenhava sem parar. Rostos que lhe surgiam na mente, sem saber de quem seriam. Caricaturas muito engraçadas que faziam a sua esposa e confidente esboçar um sorriso. E ele era o fã número um do talento da sua amada. Incentiva-a a continuar e a dar largas à sua criatividade. Este era mais um sentimento mútuo porque ambos se apoiavam e compreendiam-se melhor do que ninguém. Afinal eram almas gémeas que se tinham cruzado numa outra vida, voltando a encontrar-se no presente.
O futuro? Não pensavam muito nisso. Procuravam viver intensamente cada dia, cada momento, cada gesto por mais simples que fosse. Aí estava a real importância da vida e de a saber viver. Era um dia de cada vez. Mais um passo em frente. E mesmo que dessem dois para trás dariam mais três para a frente. Afinal a montanha-russa está sempre presente, com altos e baixos, o segredo está em saber contornar os obstáculos e retirar sempre algo de positivo.
Susana Cardoso